Trace um paralelo entre o teatro de Ariano Suassuna e o de Gil
Vicente. Para tanto, selecione um trecho de cada um desses autores,
apresentando os traços formais e conteudísticos coincidentes.
Em Portugal, as primeiras manifestações teatrais começaram no
final da Idade Média, com as obras de Gil Vicente. Elas representavam a comédia
de costumes, por meio de situações cotidianas. Gil Vicente criticava as classes
sociais construindo um perfil para cada grupo. Dessa forma, não criticava
apenas um indivíduo, mas sim toda a sociedade.
O teatro, nesse período, passava por um período de transição da
Idade Média para o Renascimento. Na Idade Média, os privilegiados eram o clero
e a nobreza, ou seja, eram as classes que detinham o poder político, financeiro
e religioso, e segundo seus interesses, repreendiam manifestações culturais
usando dogmas da religião para a submissão das classes menos favorecidas.
As peças de Gil Vicente caracterizavam-se pela valorização do ser
humano e da sua cultura. Também reconheciam os valores sociais das massas, como
sua religiosidade e suas crenças, numa mistura do religioso e profano. Gil
Vicente fez suas peças de maneira bastante engenhosa, criando cenas nas quais
os personagens representavam grupos sociais da época.
O Auto da barca do inferno aborda a idéia do que acontece após a
morte, um questionamento do ser humano há vários séculos. Nessa obra,
percebe-se, de maneira bem ampla, o modo como Gil Vicente trabalha suas
personagens, que na peça, representam uma classe social. Após a morte, cada
personagem passa por um julgamento, acontecido à beira de um rio que representa
a passagem da vida para a morte. Na sequência, os personagens, de acordo com
seus atos passados, entram em barcas, onde uma levará os bons para o céu e a
outra levará os maus para o purgatório ou inferno. Durante essa cena, todos são
incapazes de reconhecer seus atos pecaminosos ou injustos.
“Anjo – Eu não sei quem te cá traz...
Brísida – Peço-vo-lo de giolhos! (joelhos)
Cuidais que trago piolhos,
anjo de Deos, minha rosa?
Eu sô aquela preciosa
que dava as moças a molhos,
a que criava as meninas
pera os cónegos da Sé...
Passai-me, por vossa fé,
meu amor, minhas boninas, (margaridas)
olhos de perlinhas finas!
E eu som apostolada,
angelada e martelada,
e fiz cousas mui divinas.
Santa Úrsula nom converteu
tantas cachopas como eu (...)” (meninas)
(Vicente,Gil.1996)
No Brasil, as peças de Ariano Suassuna mantêm aspectos semelhantes
com as obras de Gil Vicente, pois demonstram de maneira moderna os tipos de
peças medievais, como o auto, encontrando no teatro um meio de retomar as
tradições populares e mostrar a realidade nordestina brasileira, de maneira
bastante enfática e realista.
O Auto da Compadecida é uma peça escrita onde as ações se
dão em torno do sertão nordestino, tendo como foco principal os acontecimentos
na vida de um pobre, esperto e mentiroso chamado João Grilo, que tem como
companhia o personagem Chicó. João Grilo e Chicó representam o sofrimento do
povo nordestino, na sua luta contra a miséria e a violência. João Grilo é o protagonista da obra, pois a
partir das suas ações é que a trama se desenvolve. Ele não possui posses, mas
possui um elevado grau de astúcia. Vive no sertão nordestino, onde enfrenta a
desigualdade social, mesmo assim não apresenta dificuldades em lidar com esse
modo de vida, pois, por diversão, mente e engana aproveitando-se de diversas
situações apresentadas no enredo.
CHICÓ
Deixe
de ser vingativo que você se desgraça! Qualquer dia você inda se mete numa
embrulhada
séria!
JOÃO
GRILO
E o
que é que tem isso? Você pensa que eu tenho medo? Só assim é que posso me
divertir.
Sou louco por uma embrulhada (SUASSUNA, 2005, p.27-28)
Apesar
de Ariano Suassuna compor sua obra com características que lembram as de Gil
Vicente, pode-se observar alguns traços que diferenciam esta daquela. Essa
diferença começa a ser percebida nos títulos das respectivas obras. Em Auto
da barca do Inferno há uma denuncia contra a tendência humana para o mal,
passando a ideia de que os erros humanos são considerados imperdoáveis na visão
divina e que os autores desses erros, devem ser condenados ao inferno. Em
contrapartida, Auto da Compadecida, remete à noção de que o homem é um
ser passível de erro, mas é possível que seja perdoado, por intermédio da
“Compadecida”, Nossa Senhora, que na Igreja Católica é considerada pelos fiéis
como a advogada capaz de interceder pelos pecadores.
Portanto,
na obra moderna, a visão religiosa é mais flexível e o julgador, Jesus Cristo,
é capaz de ouvir a justificativa dos seres que estão sendo julgados,
interrogando- os sobre o motivo de tais atitudes consideradas mundanas para a
sociedade. O bem acaba prevalecendo sobre o mal, ao contrário do que acontece
no Auto da barca do inferno,
onde o Diabo é o protagonista.
Criticando
diversos setores da sociedade, mas sem deixar de serem contundentes e
realistas, os dois dramaturgos mantêm a convicção de que uma das funções
sociais da Literatura é justamente a problematização da realidade. Unindo
crítica e sátira, procuram através do humor, corrigir a sociedade, numa crença
do riso no castigo dos costumes viciosos.
Eles
não só têm em comum o cômico das farsas e a religiosidade dos autos, como
também uma série de construções dramáticas às quais se ligam utilizando
recursos da retórica popular. São
autores que buscam na linguagem simples e popular uma fonte para os temas, os
diálogos e os tipos de personagens em suas peças.
Bibliografia
SUASSUNA. Ariano. Auto da Compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 1997.
VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno. São Paulo: Núcleo, 1996.
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